ESPAÇO PÚBLICO
O ROMANCE DO ESPAÇO PÚBLICO
Para falar de espaço público, é necessário primeiro abordar toda a crise atual que circunda o seu conceito. Decidi, então, trazer alguns questionamentos que o arquiteto argentino Adrián Gorelik expõe em seu texto “O romance do espaço público”.
Primeiramente, Gorelik teoriza três modelos urbanos que ele notou influenciar nas diferentes práticas espaciais e nas políticas urbanas a partir dos anos 80 do século passado, seriam eles: Habermasiano, Arenditiano e assistencial. O objetivo não é adentrar em cada um deles e entender suas articulações entre si e com a cidade, mas deixar claro que tais modelos têm caráter conflitivos e que, os especialistas urbanos, utilizaram essas conceitualizações para se referirem ao espaço público e operar a partir de suas próprias tradições, incorporando, portanto, novos esquemas.
Em seguida, o autor discorre sobre as articulações do romance do espaço público, que surgiu nos anos 1980 quando, depois de muito tempo de ausência nos vocabulários cultural, sociológico, político e urbano, o espaço público converteu-se em categoria autoexplicativa e operativa. Ele se transformou em uma “categoria-ponte”, já que reúne uma ideia de cidade, arquitetura, política, sociedade e cultura urbana, que tanto iluminam o conceito de “espaço público”, quanto se deixam por ele iluminar, sendo complementares. São dimensões da sociedade, da política e da cidade fortemente diferentes, mas que de alguma forma se conectam, apesar de Gorelik deixar claro que não resolvem seu nó teórico principal: a relação entre forma urbana e política.
A partir dos anos 80 até hoje, coisas completamente diferentes foram mencionadas por meio da categoria “espaço público”. Por exemplo, tanto era falado por pessoas que desejavam que fossem devolvidas à sociedade esferas que estiveram por décadas sob o monopólio do Estado – processo nos anos 90 de privatização de serviços públicos –, assim como por pessoas que buscavam preservar os espaços comuns dirigidos pelo Estado, protegendo-os do negócio privado. O que essas oposições nos mostram é o conflito inerente na definição de espaço público. Trata-se de algo óbvio e evidente, mas que não costuma ser tematizado, convertendo-se, portanto, em um fetiche.
“Continua tendo sentido, então, chamar de ‘espaço público’ qualquer uma dessas opções, lutando pela definição ‘legítima’? O pensamento urbano mais avançado, faz tempo, começou a questionar a própria noção de cidade que aludia à categoria de espaço público.” [1]
Para Gorelik, o espaço público se converteu em um lugar idealizado em que os indivíduos depositam todas as virtudes que uma cidade poderia ter, ao invés de ter o compromisso de colocá-las em prática na realidade. A “categoria-ponte” teria se transformado em uma “categoria zumbi”, já que continua presente no nosso discurso como se a ela fosse confiada a alcançar uma conexão implícita entre especialistas urbanos, agentes econômicos e governo, quando, na verdade, se funcionaram articuladamente, não foi para favorecer o espaço público.
Entretanto, recentemente, arquitetos começaram a deixar de lado a forma banal em que veio funcionando a categoria espaço público e apelando para sua capacidade de composição de esferas diferentes, para decompor suas partes individuais e adotando, como Rem Koolhaas alertou no início dos anos 1990, o discurso do caos para entender a cidade.

A ARTE PÚBLICA
De acordo com a historiadora e crítica de arte americana, Rosalyn Deutsche, “público” tornou-se parte do discurso da democracia conservadora - assim como os termos “liberdade”, “igualdade” e “participação” - para fins especificamente de direita e no qual, no campo da cidade, é utilizado para sustentar um urbanismo cruel e irracional.
É possível perceber em seu discurso que Deutsche adota uma visão de modelo urbano, a partir da teorização de Gorelik, “Arendtiano”. Esse modelo deriva da concepção de espaço público de Hannah Arendt, no qual ele representaria a Ágora da pólis clássica, ou seja, é o espaço da ação política, do lugar do encontro com o outro para a construção da diferença. É um espaço em ebulição que, através de manifestações, assim como da arte que ocupa a rua, não se propõe a articular a vida social, mas pôr em evidência as múltiplas fraturas entre a sociedade, o espaço e o tempo.
Já em relação a arte pública, Deutsche acredita que seus defensores frequentemente procuram resolver confrontos por meio de procedimentos que são chamados de "democráticos", devido a, por exemplo, o “envolvimento da comunidade” na seleção das obras de arte, ou a chamada “integração” das obras com os espaços. Entretanto, dessa forma, eles deixam de lado a real conveniência e necessidade desses procedimentos, já que o papel da democracia seria sustentar e não resolver os conflitos. Tal questionamento é justificado por ela quando, a partir dos anos 80, o interesse do lucro privado e o controle estatal fizeram da arte pública uma mera legitimidade democrática, utilizadas para “embelezar” e “dar função”, mas que, na verdade, ajudavam a suprimir os conflitos sociais e as relações de opressão que esses espaços produziam.
“A nova arte pública envolvia e ocultava o que os geógrafos marxistas chamavam de ‘política do espaço’ - uma frase que se refere não apenas às lutas que ocorrem dentro dos espaços, mas, mais importante, às lutas que produzem e mantêm esses espaços.” [2]
A arte pública, para ela, seria então o instrumento pelo qual as pessoas se envolveriam na discussão política ou entrariam em uma luta política, sendo assim, qualquer “site” poderia ser potencialmente um espaço público. Não necessariamente são espaços urbanos como praças, praias, ruas, podem ser museus e galerias. Muito menos necessitam estar na cidade física considerada “real”, podem estar no ciberespaço e mídias de massa. Para ela, a rejeição desses outros espaços é contraproducente, uma vez que nos impede de estender o campo da política espacial, limitando diferentes tipos de espaços se tornarem públicos.
“O que resta então como o significado de arte "pública"? Parece, para Deutsche, a marca qualificadora da arte pública não é seu lugar ou sua existência como objeto, mas seu efeito. Onde quer que esteja situado e de qualquer material que seja feito (se de fato é feito), o trabalho deve apoiar, em vez de suprimir, o debate democrático sobre os limites, tanto físicos quanto intangíveis.” [2]
POLÍTICA DO ESPAÇO
Já que a “política do espaço” – lutas que produzem e mantêm o espaço – foi abordada por Rosalyn Deutsche, gostaria de ressaltar um dos aspectos que me parecem mais importantes na discussão dos “espaços públicos”, teorizados e discutidos nessas bibliografias que eu trago: as barreiras e dificuldades de acesso que limitam o direito à cidade por todos.
Na maioria dos casos, as pessoas da periferia urbana são as que mais sofrem em relação a sua mobilidade e as práticas socioespaciais que lhes são estigmatizadas e muitas vezes negadas pela política, forma de produção de cidade e pela própria sociedade.
De acordo com o brasileiro Élvis Ramos, os indivíduos dessa periferia, sobretudo os jovens, acabam elaborando suas formas de saltar as escalas, construir suas territorialidades e seus agenciamentos, burlando muitas barreiras materiais e simbólicas que se impõem sobre seus espaços de vida. Essas lutas têm a ver com a ideia de adquirir capital espacial, que lhes permitiriam compor formas de mobilidade e acessos na cidade.
Tais práticas que vão ao contrário da segregação socioespacial e da estigmatização territorial, podem se apresentar também no âmbito do lazer e da arte. É isto que Ramos busca exemplificar em seu artigo [3], levando em conta a microcultura do low – uma das redes juvenis da periferia da cidade de Marília, São Paulo –, para mostrar como a diversão também é um campo de construção de capital espacial. É um recurso que não abrange apenas a questão da mobilidade, mas também da territorialidade e visibilidade.
“Ou seja, ao mesmo tempo em que os jovens buscam a diversão na sua fruição, também constroem espacialidades para se tornarem visíveis e não raro acabam entrando num campo de divergência e luta na cidade.” [3]
Como diz Rosalyn Deutsche, o termo “público” acaba sendo um disfarce para sustentar um urbanismo cruel e irracional, em contraponto, essas práticas, independentemente de serem consideradas artísticas ou não, são o instrumento pelo qual as pessoas entram em uma luta política e apoiam um debate democrático.
LA HAINE (O ÓDIO)
O filme francês "O Ódio" (1995), do diretor Mathieu Kassovitz, aborda questões do espaço público, principalmente sobre o poder de mobilidade, visibilidade e territorialidade da periferia. Inspirado na história de três jovens vítimas de violência policial, quando o filme estreou, considerando o contexto francês na época, gerou uma grande repercussão, tanto de indignação entre os policiais franceses, quanto de encorajamento de manifestantes nas ruas de Paris.
O curta conta a história de três jovens amigos – o judeu Vinz, o árabe Saïd e o pugilista Hubert – descendentes de imigrantes e moradores de um complexo habitacional nos subúrbios de Paris, conhecidos como banlieues, motivo de orgulho para seus moradores que, no início do século XX, se mudaram para lá para fugirem da imundície e precariedade da cidade grande. Entretanto, décadas depois, os subúrbios apresentam prédios degradados, carros incendiados e bairros que parecem ruínas devastadas por uma guerra, servindo como cenário para os jovens locais que encaram diariamente a disputa por território e a luta por visibilidade na cidade – vindo junto com uma boa dose de discriminação e abuso policial.
A obra começa com gravações reais de conflitos entre policiais e manifestantes nas ruas de Paris e se desenvolve, na ficção, nas 24h seguintes a essa noite de protestos em que um jovem, amigo dos protagonistas, é detido pela polícia e espancado em interrogatório até ficar em coma. Vincent, por coincidência, acha uma arma perdida durante o motim e jura que, se seu amigo morrer, ele vai matar um policial.
“O Ódio” pode ser resumido em uma anedota que será repetida algumas vezes durante o longa: “É a história de uma sociedade que cai e, durante sua queda, continua a repetir para si mesma: ‘até aqui, tudo bem…até aqui, tudo bem…até aqui, tudo bem…’. Mas o importante não é a queda, é a aterrissagem.”. O filme é uma narrativa do ódio presente nos espaços públicos opressivos dessas periferias, que acaba refletindo em suas configurações sociais. Não por acaso, as formas que os jovens encontram como maneiras de burlar as barreiras materiais e simbólicas impostas em seus espaços de vida, se concretiza por meio da violência, representando um problema que continua contemporâneo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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GORELIK, Adrián. El romance del espacio público. Alteridades, México, v. 18, n. 36, p. 33-45, jul./2008.
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DEUTSCHE, Rosalyn. “Art and Public Space: Questions of Democracy.” Social Text, no. 33, 1992, pp. 34–53. JSTOR, www.jstor.org/stable/466433. Accessed 19 May 2021. Tradução própria.
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RAMOS, Élvis M. A construção do capital espacial e da visibilidade social pela microcultura juvenil do low na cidade de Marília/SP. GEOgraphia, v. 20, n. 44, p. 84-97, 30 dez. 2018.
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LA HAINE (TRADUÇÃO: O ÓDIO). Direção: Mathieu Kassovitz. Produção: Christophe Rossignon. Paris: Canal+, 1995. Arquivo MP4. (98 min.)