REIVINDICAÇÃO
Para falar sobre reivindicação, principalmente se tratando da cidade, me parece imprescindível trazer o que a filósofa Isabelle Stengers acredita significar “to reclaim”, podendo ser traduzido como “reivindicar”. Para ela, reivindicar algo de que fomos separados não significa reconquistá-lo da forma que era antes, mas regenerar a partir da própria separação, aprendendo o que é necessário para habitá-lo novamente.
Significa reativar aquilo de que fomos separados, mas não no sentido de que possamos simplesmente reavê-lo. Recuperar significa recuperar a partir da própria separação, regenerando o que a separação em si envenenou.
“‘Reclaiming’, na verdade, está irredutivelmente associado a ‘curar’, ‘reapropriar’, ‘aprender/ensinar de novo’, ‘lutar’, ‘tornar-se capaz de restaurar a vida onde ela se encontra envenenada’”. [1]
Stengers também defende que, apesar da reivindicação não poder ser reduzida à fruição de uma ideia, os agenciamentos que acorrem no rizoma de Deleuze e Guatarri [2] podem aprofundar esse processo, pois essas conexões servem para curar e aprender, muitas vezes a partir da crítica.
CIDADE SEM FORMA
“Se, a exemplo da arte, a tarefa da arquitetura é imaginar modos/mundo alternativos de estar e de agir no espaço - em especial no espaço da cidade, no ‘espaço público’ -, é tempo de reivindicar a cidade sem forma.” [3]
O artigo “Reivindicar a cidade sem forma”, do arquiteto e professor Otavio Leonidio, é também uma referência essencial para se pensar no ato de reivindicação, e de como nossos corpos operam na cidade que ele chama de “sem forma”.
Explicando brevemente, a cidade como forma é aquela na qual o espaço é capturado pelo tempo histórico e que vem sendo representado e cartografado há anos. É também aquela na qual um corpo específico é requisitado de acordo com suas leis, sistemas e economias - o aparelho de Estado.
Já cidade sem forma, parte então do abandono da cidade como forma, é uma reivindicação de uma cidade banida, exilada, que não permite mais o ato de pensar, imaginar e principalmente, de ocupar.
“Se a cidade como forma requisita e define um corpo “específico”, afeito à sua economia geral, a cidade sem forma demanda um corpo alternativo: um corpo/não corpo ficcional e protético. Um corpo anacrônico e dessituado, que simultaneamente está e não está; um corpo inespecífico e parafenomenológico que opera saltos, descontinuidades, anacronismos e todo tipo de dobra espaçotemporal.” [3]
Se, como é dito no artigo, o “espaço público” é quem define o “público” e não o contrário, o corpo que habita a cidade sem forma reivindica esse espaço definidor de um público socialmente, etnicamente e politicamente excludente e supressor do ato de ocupar. Esse corpo, portanto, reivindica o chão.
CHEGA DE FIU FIU
Em 2013 foi lançada a campanha “Chega de Fiu Fiu” pela organização Think Olga para debater o assédio contra as mulheres e o direito delas nos espaços públicos. Já em 2018, como desdobramento da campanha, foi lançado o documentário de mesmo nome, dirigido por Amanda Kamanchek e Fernanda Frazão, que contaram com a colaboração de Juliana de Faria, fundadora do Think Olga, na produção do longa independente.
O documentário se desenvolve em torno de uma pergunta chave: “Qual é o lugar das mulheres na cidade?”. A partir disso, o longa começa explicitando como a participação da mulher é marcada pela insegurança e, também, quais são os dificultadores do acesso a esses espaços públicos, enfrentados diariamente pelos corpos femininos.
“De acordo com pesquisa da ActionAid de 2016, 86% das brasileiras já sofreram violência sexual ou assédio em espaços públicos. Delas, 77% ouviram assobios, 57% ouviram comentários de cunho sexual, 39% xingamentos, 50% foram seguidas, 44% tiveram seus corpos tocados, 37% tiveram homens que se exibiram para elas e 8% foram estupradas.” [4]
“Chega de Fiu Fiu” lança mão de artifícios de filmagem, como o “óculos-espião”, para denunciar e mostrar como o corpo, identificado como feminino, é percebido nos espaços da cidade. Entretanto, para além da denúncia, o documentário tem a pretensão de deixar claro como esses corpos, marcados por uma série de violências e invisibilidades presentes na “cidade como forma”, vêm reivindicando a “cidade sem forma”, na qual são permitidos o direito de ocupar.
Há muitos anos as mulheres circulam nesses espaços, porém são excluídas sistematicamente do debate e da produção da cidade. Essa reivindicação da “cidade sem forma” utiliza meios, explicitados no documentário, que reafirmam o próprio conceito de reivindicação de Isabelle Stengers. A partir da separação imposta de nossos corpos da cidade, regeneramos o que nos foi negado, aprendendo o que é necessário para habitá-lo novamente, seja por ações de movimentos feministas, por protestos, expressões artísticas e performances, por infiltrações dentro do próprio sistema governamental, por conscientização dos nossos opressores ou pela negação de estar alinhada com as regras que a “cidade como forma” nos exige.
Concluo assim que, ao meu ver, não poderia trazer outra referência audiovisual que estivesse mais alinhada com questões contemporâneas – principalmente as que me atingem – e com os conceitos de “reivindicação” de Isabelle Stengers e de “reivindicação da cidade sem forma” de Otavio Leonidio pois, “Chega de Fiu Fiu”, se resume em reivindicação do chão.
ESPERO TUA (RE)VOLTA
Outro longa brasileiro que aborda a questão da ocupação como forma de reivindicação, é o documentário “Espero tua (re)volta”. Dirigido por Eliza Capai, o audiovisual reúne filmagens de ativistas juvenis brasileiros que vão desde as mobilizações em 2013, contra o aumento do preço dos ônibus e o direito à mobilidade, até as eleições presidenciais de 2018.
O longa retrata principalmente o movimento de ocupação de escolas públicas no estado de São Paulo, que ocorreram em 2015, contra a proposta de mudança no ensino estatal que fecharia 93 escolas e aglomeraria mais ainda as salas de aula do ensino público. Dando voz a três estudantes do ensino médio, eles explicam seus métodos de reivindicação e mostram seu dia-a-dia durante os protestos e as ocupações, para deixar claro quais foram seus reais objetivos, distorcidos por algumas mídias e pelo governo, como apenas vandalismo.
De acordo com o próprio governador da época, Geraldo Alckmin, a respeito das manifestações de 2015 que ocorreram no centro de São Paulo: “isso é inaceitável e não é possível ter tolerância em relação a esse tipo de comportamento e o prejuízo da coletividade”. O que é inaceitável? Inaceitável é não poder ocupar e reivindicar pacificamente pela precarização da educação, um direito dos jovens. Que prejuízo da coletividade? Prejuízo da coletividade é um governo opressor que não permite que parte dessa coletividade reivindique sem ser em seus termos e acaba por utilizar a violência contra menores de idade.
Os adolescentes fazem questão de deixar claro suas frustações, uma delas é o fato de a escola não debater sobre formas de se questionar e transformar a sociedade, sendo sempre moldados para seguir regras. Relatam também que, pela primeira vez, um espaço que frequentavam todos os dias – a escola –, quando ocupados por eles, se transformou em um espaço diferente o qual nunca estiveram antes, um espaço onde cada um pudesse escolher o que quisesse ser. Em suas palavras “ocupar a rua é político” e “ocupar é resistir”, de fato, nos dois movimentos, tanto em 2013 quanto em 2015, frente a pressão e a reivindicação, o governo recuou com suas medidas. Isso só foi possível devido a conscientização dos jovens de que eles podem construir suas próprias utopias futuras e, assim como em “Chega de Fiu Fiu”, devido à luta pela reivindicação do chão, reapropriando um espaço que lhes foi negado e, literalmente, “aprendendo o que é necessário para habitá-lo novamente”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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STENGERS, Isabelle. Reativar o animismo. Tradução Jamille Pinheiro Dias. Belo Horizonte: Chão de Feira, 2017. (Caderno de Leituras n. 62).
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Explicação de agenciamento e rizoma no eixo “Montagem”.
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LEONIDIO, Otavio. Reivindicar a cidade sem forma. Serrote, Rio de Janeiro, v. 38, p. 114-131, jul. 2021.
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Assista o documentário “chega de fiu fiu” no MIS. Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo, 2018. Disponível em: https://www.cultura.sp.gov.br/assista-o-documentario-chega-de-fiu-fiu-no-mis/. Acesso em: nov. 2021.
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CHEGA DE FIU FIU. Direção: Amanda Kamanchek e Fernanda Frazão. Produção com Juliana de Faria. São Paulo: Brodagem Filmes, 2018. Arquivo MP4. (73 min.)
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ESPERO TUA (RE)VOLTA. Direção: Eliza Capai. Produção: Mariana Genescá. São Paulo: Taturana Mobilização Social, 2019. Plataforma MUBI. (93 min.)