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CONTRACARTOGRAFIA

RELAÇÕES DE PODER

“O ato de cartografar preocupa-se em produzir conhecimento, que é projetado e distribuído em um mapa, para que as pessoas possam usá-lo. Visualizar, conceituar, registrar, representar e criar graficamente espaços são atos de mapeamento. Todavia, um mapa não é uma imagem objetiva e neutra do mundo. Como bem notou o historiador Brian Harley, estamos acostumados a pensar nos mapas como representações exatas e acuradas da realidade, quando essas representações carregam erros, omissões, pontos de vista e valores. Por trás de um mapa, esconde-se um conjunto de relações de poder com especificações impostas por um indivíduo particular, pelo mercado e/ou pela burocracia do Estado.” [1] 

Mapear em si é um processo político, pois por trás da cartografia, há pessoas que fazem e definem esse mapa e suas escolhas de representações - seja de territórios, coisas ou pessoas - estão atreladas a relações de poder e ideologias. Como ressalta o pesquisador brasileiro André Mesquita, nós somos condicionados a acreditar que mapas são “espelhos da verdade”, pois o objetivo dessas instituições atreladas aos interesses do estado, militares e das burguesias políticas é servir a vigilância e governança.  Dessa forma, é possível reafirmar esses poderes por meio da ordenação e do domínio territorial e de fronteiras, pela exploração de recursos naturais e pelo controle de espaços públicos.

MAPA COMO CONSTRUTOR/DESTRUIDOR DE TERRITÓRIOS

Questões políticas e de poder sempre estiveram tão atreladas à cartografia que, em muitos casos, informações e fronteiras que constavam nos mapas e não existiam de fato no território, começaram a influenciar e definir o espaço de forma a se ajustar com o que constava nos registros cartográficos. Da mesma forma, o que não constava no mapa, apesar de existir, começou a não ter importância e a desaparecer no campo político - temos como exemplo edifícios e vilarejos que foram destruídos pois a cartografia foi “espelhando e formando a própria realidade que elas pretendiam representar”.

“O enunciado de Weizman sobre ‘espelhar e formar a realidade’ assinala a condição de que mapas produzem, e mesmo precedem, o território – seja na guerra, seja em nossa vida cotidiana. Formar essa realidade implica em distorcê-la e apagá-la. Mapas envolvem presenças e ausências, constroem conhecimento sobre um território para dominá-lo.” [1] 

DESCONSTRUINDO OS MAPAS

“Se o Estado usa a cartografia para ocupar, destruir ou controlar, porque não podemos subverter e usar as ferramentas cartográficas a favor das lutas sociais, valorizando um processo colaborativo e dialógico de produção de mapas? Ao invés de apenas aceitar a autoridade dos mapas imperiais e militares, por que não fazer da cartografia uma prática coletiva e comunitária, capaz de mapear redes invisíveis de poder e sistemas de opressão em que todos nós estamos sujeitos? Inverter a imagem do próprio mapa oficial e os interesses de dominação do uso da cartografia, são atos que reconfiguram as articulações entre ação política e a possibilidade de imaginar o mundo desde abaixo.” [1] 

A cartografia, desde o Renascimento até o início do século XIX, tinha uma “aura” de informações infalíveis e imutáveis e, acreditava-se que a verdade cartográfica só poderia ser obtida a partir de medições sistemáticas. Já na primeira metade do século passado, o movimento dadaísta começou a explorar o inconsciente da cidade, tema que acarretará a seguir no desenvolvimento das deambulações surrealistas, das derivas letristas e das cidades lúdicas situacionistas, dando origem, já na segunda metade do século, a uma cartografia cognitiva - psicogeografia. Temos como exemplo Naked City: illustration de l'hypothèse des plaques tournantes, do filósofo francês Guy Debord (1957) e New Babylon do artista holandês Constant Nieuwenhuys (1963).

 

Dito isto, já em 1989, o geógrafo inglês John Brian Harley publica seu artigo Desconstructing Maps e, a partir dele, cria-se uma intensa discussão entre os teóricos da área instaurando-se um novo período na cartografia, que mais tarde foi denominado como “cartografia pós-representacional”. Harvey põe em pauta a neutralidade dos mapas que silenciam e omitem fatores tão importantes quanto o que é representado e, considera a cartografia por uma perspectiva relacional, pois retratam inúmeros processos em andamento.

 

A partir desse período, os mapas passam a servir também como instrumentos para a construção de contra-narrativas e contra-mapas, que propõem formas alternativas de se pensar, sentir e habitar o mundo. Esses, não estando mais subordinados a restritos grupos para serem concebidos, começam a disputar representações do espaço com as formas de poder, uma espécie de “combate de cartografias”. São diversos mundos moldados de formas distintas de acordo com as variações de grupos e indivíduos existentes, então, esses mundos, podem ser também representados cartograficamente de formas diferentes e não somente pelo Estado e pelas elites.

“Se o mapa é um conjunto específico de reivindicações de poder/conhecimento, então não somente o Estado e as elites, mas o resto de nós pode igualmente fazer reivindicações igualmente poderosas e em disputa. (CRAMPTON, 2010, p. 41)” [3] 

CONTRACARTOGRAFIA

“Essas práticas foram nomeadas pelo artista, teórico das mídias e ativista Brian Holmes, como ‘contracartografias’, à luz do pensamento de Foucault sobre as condutas e contra condutas: ‘Cartografias críticas e dissidentes surgem contra o fundo da tecnologia dos mapeamentos dominantes. Elas aparecem como contra condutas no sentido dado por Michel Foucault’ (HOLMES, 2006, p. 25, tradução nossa).” [2] 

Contracartografia portanto, é a prática do dissenso, de desconstrução e reconstrução que se reapropriam criticamente do mapa e se opõem ao consenso do modelo tradicional ditado por grupos específicos e privilegiados. Ela desvela, evidencia, critica e transforma aspectos, contradições e invisibilidades da realidade contemporânea. Ela também, assim como a montagem e o rizoma, está para além do objetivo de criar uma imagem finalizada.

“Como procurei afirmar, uma contracartografia é menos um objeto visual, que acumula informações, e mais uma oportunidade de ir além da própria representação dos mapas tradicionais para gerar diálogos e descobertas, potencializando suas narrativas em conjunto com as intervenções nos espaços públicos. Sua prática é tanto uma crítica de como os mapas funcionam, como um meio de gerar novas modalidades de pesquisa, colaboração e organização.” [1] 

PRÁTICAS CONTRACARTOGRÁFICAS

Desde que a cartografia começou a ser explorada pelos artistas contemporâneos, diferentes tipos de ações foram aplicadas nos mapas: rasgar, dobrar, picotar, despedaçar, queimar, dissecar, cortar, colar, agrupar, remanejar, remontar e outras infinitas experimentações. Essas práticas cartográficas podem ser chamadas de contracartografias quando, como explicado anteriormente, surge o questionamento do que é a cartografia, para quem e porque é feita. Además, ela aponta existências e virtualidades antes não consideradas e, por meio de articulações não usuais, produz espacializações que, tanto no mapa quanto no espaço físico, fogem do consenso de modelos políticos, econômicos, sociais e espaciais.

Outro aspecto importante para o desenvolvimento dessas práticas é que, a partir do século XX, em um mundo cada vez mais representado por interfaces digitais de mapeamento, o mover-se e localizar-se no espaço e no tempo foram cada vez mais mediados por mídias locativas, ou seja, smartphones, smartwatches ou aparelhos que contenham GPS (Sistema de Posicionamento Global). De acordo com os arquitetos Cristina Akemi e David Sperling, nos tornamos sujeitos “geo-localizados” e as espacialidades e territorialidades contemporâneas entraram na era da “hiper-geolocalização”. Essas mídias locativas vêm ganhando uma potência cada vez maior na área da arte contemporânea, para tanto desvelar as lógicas de operação desses dispositivos e das cartografias hegemônicas, quanto realizar, a partir das críticas dos dispositivos cartográficos, novas experimentações estéticas e ações políticas.

“Atuando nos interstícios das lógicas de operação desses sistemas, indicam que há abertura para outras possibilidades de ação a serem exploradas no sentido da desnaturalização tanto das normatividades que cercam as mídias locativas quanto dos modos de percepção que modulam." [2]

Algumas linhas de práticas (contra)cartográficas foram levantadas por David Sperling a fim de contribuir para a visualização de campos comuns de experimentação:

TRAGETÓRIAS-NARRATIVAS

Pressupõem o corpo implicado e em deslocamento pelo espaço. Experiência cotidiana e eventos imprevistos, decisões e contingências, regras e desvios são traçados pelo próprio corpo no espaço em ato. As trajetórias-narrativas são da ordem dos micros espaços, das fricções entre corpos, das descobertas.

“Pode ser incluída aqui toda uma linhagem de artistas caminhantes urbanos ou dos lugares ermos, as narrativas que remontam ao flanêur, às visitas dadaístas e deambulações surrealistas, e psicogeografias situacionistas.” [3]

ARQUIVOS VISUAIS

Transformam-se em cartografias, na medida em que documentam, analisam, organizam e coletam informações. Considerando um mundo com informações em excesso, há um procedimento de extração de arquivos visuais de qualidade, em meio à quantidade existente e, isso pode ser feito por aproximação, associação e/ou montagens.

“Esta linha remonta a Georges Perec e a “Tentativa de esgotamento de um lugar parisiense” como também aos trabalhos fotográficos de Bernd e Hilla Becher (Pitheads, 1974, dentre outros), de Edward Ruscha (Every Building on the Sunset Strip, 1966) e da família Boyle (Journey to the Surface of the Earth, 1970).” [3]

GRÁFICOS-DIAGRAMAS

Dão forma e concedem visibilidade a processos e inter-relações de natureza abstrata ou que foram tornadas invisíveis. Ele desvenda conexões entre agentes e poderes, estados e potências, presentes e devires, explicitando-as por meio do desenho de linhas abstratas ou contornos semelhantes.

“selecionam campos de atuação e desenham projeções de configurações de totalidades (sempre) parciais, em movimento, em processo de (des)articulação. (...) Aqui podem ser identificados trabalhos de Öyvind Fahlström (WorldMap, 1972) e Aliguiero Boetti (Mappa, 1979-85), como de Mark Lombardi (dentre outros, George W. Bush, Harken Energy and Jackson Stephens 1979-90, 1999), e Bureau d’Études (Wartime Chronicles, 2001), como as práticas de Iconoclasistas (Talleres de Mapeo Collectivo, 2006) e Counter-Cartographie Collective (Disorientation Guide, 2006)” [3]